Estou num processo de criar um novo curso de escrita criativa. Para mim, tem um pouco do sentimento de quando começo a escrever um novo romance. A mente borbulha em ideias e se empolga, ao mesmo tempo quase sufoca por dentro pois as ideias são como mil bolinhas de sabão pulando no ar, querendo ser vistas antes de explodirem no céu. É preciso organização e calma para pegar cada bolinha e colocá-la no papel de forma que faça sentido ao aluno e ao leitor.
Hoje, posso deixar um pouco de lado minha mineirice e assumir que já tenho certa bagagem na área da escrita criativa. São mais de dez anos estudando, escrevendo, e também compartilhando escritas criativas. Mais de seiscentos livros impressos vendidos (para uns é pouco, para outros, muito, para mim, uma autora independente: uma grande e satisfatória conquista). Também estão na bagagem alguns diplomas e o principal: muitos encontros nesse caminho. Dessa vez, além da turma online do Traços: a escrita criativa inspirada pela fotografia, que vou abrir no meio do semestre (se quiser, já me manda o contato para te colocar na lista da turma), em Março começo esse novo curso o qual chamei de Entrelaços da escrita: um clube do livro entrelaçado a um clube de escrita criativa. É um curso mais longo, onde a ideia é mesclarmos leituras, no estilo clube do livro, com trocas, teorias e práticas sobre o mundo da escrita e a construção narrativa, num estilo clube da escrita também.
Fiz um curso acessível e presencial em BH, em parceria com a maravilhosa psicóloga Fabiana Almeida, que cedeu o espaço para a turma, porque realmente queria contribuir para mais pessoas retornarem às suas escritas e se conectarem à esse mundo que para mim tem um lugar essencial na vida, na minha construção de autoconhecimento, de elaboração, de acesso à criatividade e contato com a arte. Em dois dias, a turma lotou e agora estamos com lista de espera. Eu fiquei completamente surpresa, depois me lembrei: as pessoas gostam e querem escrever. Isso não deveria me surpreender, afinal eu sou uma delas!
Alguém aí deve estar pensando o que é uma escrita criativa exatamente?
Tem algo de específico sobre ela, além de ser criativa? Bom, sim, nem por isso é uma resposta possível de ser objetiva.
No artigo A ascensão da escrita criativa, de D. G. Myers (psicólogo e escritor americano) ele se aprofunda nas buscas pela origem de como e quando a escrita criativa surgiu. De acordo com Myers, o estudo da escrita criativa surge nos Estados Unidos, em um período de sessenta anos, entre 1880 e 1940, como um esforço para reformar o estudo da literatura. Até então, a literatura era tratada como um estudo rígido, um corpo de conhecimento analisado principalmente pelo olhar da Filologia (em resumo resumidíssimo, a filologia é o estudo científico do desenvolvimento e transmissão de uma língua).
Ao invés disso, a proposta era passar a tratar a literatura como uma experiência contínua, uma coisa viva, como se as pessoas pretendessem de fato escrever.
“A escrita criativa sendo o nome dado a qualquer esforço que se empenhe em restaurar a ideia de literatura como uma disciplina integrada de pensamento e atividade, de estudo textual e técnica prática”
tradução livre, tirada do artigo The rise of creative writing
Outro espaço maravilhoso para se compartilhar e alcançar pessoas que talvez adorem escrever e queiram se aventurar ou se aprimorar nessa área, pessoas que em muitos casos nem se permitem por acharem que não tem a habilidade ou o talento, não tem um português impecável, não são “escritores” seria também por aqui.
Então, juntando ao meu processo de construção do curso, vou compartilhar, a partir dessa edição, uma série de newsletters com trocas mais específicas sobre a escrita criativa, com propostas de exercícios, inclusive publicando aqui algumas das minhas próprias escritas também. Afinal, se o intuito é espalhar essa minha “igreja” da escrita criativa, então por que não fazê-lo por um dos meus canais favoritos de conexão atualmente:
Do outro lado e aqui. No final, estamos juntos, seja em cursos, pelos livros, ou por aqui!
Como contei, a escrita criativa já é vista como uma matéria de estudo e uma área profissional há muitos anos, porém no Brasil ela vem engatinhando se comparado com o estrangeiro, mas tem tomado fôlego nas últimas décadas, ficando cada dia mais estabelecida e reconhecida.
Entre os inúmeros livros de qualidade que existem hoje falando a respeito desse tema, tanto de escritores brasileiros e mais ainda dos internacionais, um que tenho gostado de ler atualmente é o da Noemi Jaffe, o Escrita em movimento. É um livro curto, que não se propõe a ser um manual de escrita. Ele traz reflexões sobre o fazer da escrita, com muitas referências, o que é bem legal.
Em uma das partes, ela aborda as palavras. Não preciso dizer que a palavra é como o tijolo da escrita, por meio dela e de suas conexões vamos construindo nossas mensagens através das narrativas, da poesia, das mesclas.
No livro, Noemi nos lembra como algumas palavras estão gastas. Ou seja, pelo uso excessivo, o lugar-comum, as inúmeras construções repetitivas, elas passaram a ser palavras que não criam resistência.
“Todas as linguagens artísticas devem lidar com a resistência dos materiais com os quais elas trabalham. (...) Um dos papéis mais importantes dos escritores inventivos é recuperar, para a língua, a impenetrabilidade das palavras e mesmo das ideias.
(...) um dos temas mais explorados, em toda a história da literatura, é o amor, (...) no cotidiano, a linguagem amorosa é tão utilizada que acaba por perder sua carga de originalidade e imaginação.”
Em outras palavras, é a sobrecarga do eu te amo, eu te quero, eu te odeio. E é pelo trabalho da palavra, como se fosse a rocha que o escultor usa, talhando por dias afinco até fazer a forma desejada, que nós, escritores, as recuperamos.
Manoel de Barros bem sabia como dizer um belo de um eu te amo:
“Deixei uma ave me amanhecer.”
E Clarice Lispector também:
“... as plantas aveludadas e carnívoras somos nós que acabamos de brotar, agudo amor, lento desmaio.”
Outro dia, comecei uma tutoria com a escritora e professora Nara Vidal. Nara tem longos anos de estudo e ensino sobre Shakespeare, incluindo um livro com uma das edições MAIS BONITAS que eu já vi, chamado Shakespearianas, as mulheres em Shakespeare. Ela me propôs um exercício semelhante à essa proposta da Noemi: escrever um texto escolhendo amor, inveja ou medo como tema, mas desenvolvê-lo sem gastar as palavras. Escolhi amor e inveja misturado, a fim de mostrar – imageticamente -, sem tocar nas palavras em si.
Segurei a xícara de café entre os dedos, a almofada da minha palma da mão direita encostada na porcelana branca, suportando sua base. Da abertura, o preto líquido balançava sutilmente com minha quase total imobilidade, enquanto eu encarava sem piscar a fumaça subindo até desaparecer no ar. Senti a pele na mão esquentando cada segundo mais, até o calor gostoso passar a ardência, uma queimação externa que invadiu também meu estômago, subindo pelo esôfago enquanto eu assisti, por entre a fumaça branca translúcida, três mesas distantes, um casal. Ele enroscando os dedos nos cachos crespos e fartos dos cabelos dela, puxando algumas molas de fios, as esticando delicadamente ao toque e depois as deixava pular de volta no ar, se enroscando novamente em cachos como parreiras carregadas de uvas, doidas para serem colhidas. Eles ali, embriagados naquele momento, naquele enrosco de olhos enquanto os meus os encaravam sem controle. Minha mão ardia, a pele vermelha embaixo da xícara me chamava, ele se aproximou do pescoço dela, o rosto desaparecendo entre os fios. Ela jogou a cabeça para trás rindo alto de algo que ele fez, talvez cochichou em seu ouvido, talvez soprou no lóbulo da orelha o hálito quente, um hálito também de café? Como o meu. Minha mão esquerda subiu até minha orelha, imaginando a sensação do seu rosto escondido entre a curva do pescoço e o refúgio dos fartos cabelos dela. Meus fios estavam ralos há anos, minha pele ressecada, as veias azuladas começando a aparecer sob a pele dos braços, um mapa trilhado, exposto até as mãos. Minhas mãos. Olhei para elas, primeiro a esquerda, depois a direita, e de repente senti. Toda dor da queimadura que a xícara infligia sobre mim. O impacto da sensação me arrematou de tal forma que nem consegui colocar a xícara na mesa, a jogando para longe em um reflexo, sacudindo a mão, segurando o pulso direito com a esquerda como que a apoiando em sua dor. A xícara ricocheteou na mesa e voou ao chão, esparramando todo o líquido pelo caminho, pedaços da porcelana se espalhando nos arredores e chamando a atenção de quem estava próximo. Balançando a mão no instinto de espantar a ardência, voltei o olhar para onde estava o casal. De todas as atenções que me encaravam, uma garçonete prontamente se aproximou para tentar entender o que aconteceu e ajudar como podia, eles seguiram imersos em si, sem notarem o grito abafado, a xícara quebrada, o pequeno escândalo do momento. Já estavam de pé, de costas, dedos entrelaçados, passos na mesma direção enquanto o que eu tinha eram apenas as minhas próprias mãos a se segurarem.
O que acharam? Deixa um comentário ou me manda por email, vou adorar saber.
Anima experimentar também?
Fica aqui a sugestão: escreva um texto, um poema, uma cena, um conto, um parágrafo que demonstre um sentimento específico sem usar a palavra de fato, trazendo imagens e ações que demonstrem esse sentimento mais do que o simples dizer. Não precisa de requinte, menos ainda de pré-julgamentos, ok? Primeiro de tudo, só precisa de uma coisa:
escrever.
Depois, se quiser, compartilha para continuarmos a conversa.
Com carinho,
Cleu
Amei!!! Fiquei até com vontade de escrever um negócinho.... é muito bonito ver como vc avança e constrói seus caminhos, Cleu! Um abraço apertado! Bru
<3