“Eu quero escrever, mas mais do que isso, eu quero trazer para fora tudo que existe enterrado, escondido no meu coração”
Diário de Anne Frank
Algumas semanas atrás, recebi uma pergunta no Instagram de um ex-aluno do Traços, meu curso de escrita criativa. Ele queria saber como eu escrevo.
Incialmente, achei que era uma pergunta ampla demais e que, na verdade, ele estava me perguntando alguma outra coisa. Depois de algumas mensagens, eu entendi que ele estava literalmente me perguntando como eu escrevo, no sentido de com qual “ferramenta” eu escrevo: se no word, no caderno, etc.
Antes de responder, fiquei pensando como as ferramentas que usamos podem sim impactar na nossa produção.
Se olharmos para a fotografia, por exemplo, encontraremos alguns pontos de vista sobre o assunto. Muito se fala que na fotografia, independentemente da ferramenta que você escolha – aqui eu vou trocar ferramenta por equipamento –, o que importa mesmo é o olhar do fotógrafo. Eu já sabia a minha opinião a respeito disso, mas, curiosa, fui perguntar para alguns amigos fotógrafos como eles viam o tamanho do impacto da escolha do equipamento sobre suas fotos.
Entre as diferentes respostas, a maioria afirmou: o olhar é sua ferramenta principal e a câmera é secundária. Mas, por mais que nosso olhar seja o grande responsável pela foto, é difícil negar o impacto importante na fotografia devido ao equipamento que usamos, não?
Na fotografia, o principal equipamento usado é a câmera. Hoje, nós temos inúmeras possibilidades para elas. Com o advento dos smartphones, as câmeras de celular democratizaram ainda mais o acesso à fotografia, inclusive oferecendo excelente qualidade de imagem. Temos também as câmeras digitais, as analógicas... Dentro dessas a gente encontra mais uma infinidade de opções.
Se fotografamos com uma câmera analógica ou com uma digital, a experiência vai ser diferente. Os limites ou as possibilidades, as assimilações, os tipos de cálculos na hora de fazer a foto, o peso, a quantidade de cliques disponíveis, etc. etc. Cada câmera oferece uma individualidade para a experiência. E isso afeta diretamente o gasto de energia, a velocidade, o tempo inclusive de pensamento e de reação do fotógrafo. Então, por mais que nosso olhar seja o principal fator por trás da foto, existem um monte de outras questões no tocante equipamento que influenciariam a captura do instante, alterando assim o resultado.
Voltando para a escrita, as coisas passam por caminhos semelhantes. Dependendo da ferramenta que você vá usar para escrever, a experiência vai ser influenciada de alguma maneira.
O ato de escrever nunca vai alcançar a velocidade do ato de pensar, portanto, o texto, o objetivo, o “como você escreve” vai ser diretamente afetado pela sua escolha.
Normalmente, é muito mais rápido teclar no computador do que escrever à mão. Se você deseja entrar num fluxo de escrita, derramando para a página sem perder tempo, usar o computador facilita imensamente.
Já a escrita à mão recebe outras influências. Na escrita (analógica?) à mão, até o peso da caneta pode ser relevante. Sério mesmo! O peso da caneta pode parecer insignificante, mas ele existe. Uma caneta mais pesada vai deixar ainda mais lenta a escrita à mão. Parece frescura? Experimenta escrever meia hora com aquelas canetas luxuosas esferográficas, e depois escreva o mesmo tempo com uma levinha estilo Bic! O punho vai ditar mais a hora de parar do que as palavras na página.
Além disso, a escrita à mão pode permitir uma conexão emocional maior com o que você está escrevendo, já que, por ser mais lenta, o processamento daquilo sendo escrito tem mais tempo de assimilação também.
Quando precisamos caminhar em um terreno tão frágil como as nossas dores, há que se ter cuidado onde se pisa. E o tempo da letra manual pode ser ideal para isso.
Ana Holanda, na revista Vida Simples
Ainda que seja a mesma pessoa, o mesmo olhar, os mesmos pensamentos, a ferramenta escolhida ali vai ter um impacto. Pode não ser o ponto de influência principal, afinal, o que nós temos individualmente, a nossa forma única de enxergar a vida, a cena, um sentimento é o que dá a graça ao texto ou à foto.
E era sobre isso que ele estava me perguntando, no final.
Ele estava tendo dificuldade de elaborar o texto que queria escrever. Não estava conseguindo fazer fluir. Havia uma parede, algum bloqueio no caminho.
Uma vez que eu entendi isso, eu sugeri que ele tentasse trocar. Saísse do computador e escrevesse à mão, porque o que ele queria escrever pedia uma descoberta mais calma e paciente.
É claro que uma escolha não anula a outra, mas eu quis compartilhar essa conversa porque, às vezes, as coisas parecem grandiosas e distantes do alcance, ou parecem carregar uma barreira invisível que a gente não consegue exatamente tocar, pontuar qual o problema. Vale lembrar que pequenas mudanças no percurso podem ajudar a chegar no ponto que você deseja. Seja para a escrita, para a foto, ou para a vida. No final, tudo circula entre si.
Respondendo sobre mim, eu sempre preferi escrever no computador por sentir que ali o freio é mais solto, então o ritmo da prosa caminha melhor. Mas tenho escrito muitos poemas nesse último ano. Descobri que, para a poesia, eu só sei escrever em caderno. De folha limpa, de preferência com uma caneta que achei por acaso, quando a comprei acreditando que era uma coisa e era outra.
Essa caneta tem a ponta fininha e escorrega fácil na página. Ela acompanha meu coração, juntando os caquinhos que eu vou esmiuçando enquanto escrevo meus poemas. Além do mais, dei para ter mania de acordar de madrugada com as palavras rondando minha testa. Vou no escuro mesmo, acendo a luz do abajur e, sem muita nitidez entre minhas pupilas e minhas palavras, nos encontramos na mistura da escuridão com a meia luz. Mas eu sei que a tinta está saindo e o papel vai se preenchendo sem problemáticas ou implicâncias entre folha, caneta e eu. Viramos melhores amigos nesse processo.
Fazendo uma curva nesses paralelos, percebi também, para além do material ou do equipamento que usamos, que as ferramentas vão se adaptando aos nossos momentos. Assim como o caderninho, a poesia em si tornou-se minha ferramenta para dar conta do que engloba este mestrado.
Para quem não sabe, estou fazendo um mestrado em escrita criativa na Irlanda. É um mestrado focado na construção técnica da prosa. Bem, a prosa é uma forma específica de narrativa mais corrida, com algumas estruturas e características predefinidas.
Desde que comecei a entrar demais nessas estruturas, nesses livros, nessas produções, me vi também fazendo um movimento de saída. De querer buscar outras fontes, de me distanciar da técnica, do aprendizado, do pensar demais, de ter que entender e enxergar a estrutura por trás das palavras, de ler como escritor!
De repente, me encontrei imersa nas noites escrevendo rimas capengas e outras muito das bonitas também, simplesmente me deixando brincar com a palavra de um jeito bem distante de tudo que na prosa vem me cansando um pouco.
É a poesia sendo a minha ferramenta de acolhimento, num momento que precisei de um colo mais quentinho. Por sorte, a encontrei não só na sua leitura, mas em sua lida também.
Acho que o papel ou o computador, o celular ou uma câmera robusta, isso tudo tem a sua relevância na escolha sim. Assim como ir sem lenço nem documento, ir fazendo, ir experimentando sem compromisso e sem julgamento, apenas ir! Muitas vezes, essa é a única ferramenta que a gente precisa para encontrar o caminho de volta.
Junto da poesia, a fotografia também mudou meus dias. Tornou-se uma ferramenta que talvez faça o inverso da sua proposta inicial. Aqui, não é meu olho quem dita a foto, mas através da fotografia descobri uma forma de não me acostumar com as belezas que vejo todos os dias pelo caminho. Porque a gente se acostuma, né?! A gente se acostuma a ver uma falésia milenar no quintal de casa e achar que aquilo é apenas um monte de terra, perdendo o frio na barriga de pensar nos gigantes que já passaram por ali, deuses ou vivos. A gente se acostuma a ver um mural pintado e pessoas passando em frente, e esquece de entressonhar o quão interessantes devem ser aquelas pessoas, sejam as que pintaram ou as que passaram. Imagina a vida que elas carregam em si e as histórias que teriam para contar?! A gente se acostuma a pisar na folha da árvore, amarelada de outono e esquece de ver os tons dourados que só a natureza sabe pintar.
Por trás da câmera, a foto relembra quão bela é a luz que bate no fim do dia, enquanto a escrita convida a nos entregarmos sem medo ao que sentimos de mais forte e de mais secreto, mesmo que a gente se acostume a ignorar isso tudo para seguir com os afazeres do dia.
Então, hoje, o caderninho que comprei num boteco de Beagá e trouxe comigo para Belfast, uma caneta e a poesia têm sido as minhas ferramentas para (r)existir em mim mesma. E a câmera do celular tem sido a minha forma de não perder de vista o caminho.
Recado:
Quem me acompanha no Instagram, talvez tenha visto que estou mudando para um perfil novo. Depois de um ano de dificuldades e bugs por um acesso de outrem no meu perfil, as coisas degringolaram por lá.
Então te convido a conhecer meu perfil novo @acleunacif
Nele, seguirei postando diversos conteúdos sobre literatura e fotografias desses diversos caminhares. Te aguardo por lá também!
Obrigada por ter chegado até aqui.
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Com carinho e até a próxima,
Cleu
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