Como se volta de uma temporada longe? Como se volta a escrever sem prazos? Como se volta a ser quem não se é mais? Como se volta com outros olhos para o próprio texto? Como se volta a conhecer o que um dia foi conhecido e agora mais parece estrangeiro?
Tenho descoberto que, na prática, para muitas dessas questões não se volta. Ao menos aquela pessoa que foi não volta mais. Um ano passa tão rápido. Um ano acontece tanta coisa. Voltei para casa e encontrei tudo grande demais.
Meu apartamento: maior do que eu me lembrava.
Belo Horizonte: para uma capital peso pequeno, de repente grande demais.
Até minhas roupas estão sobrando nas bordas, há nelas pano demais.
Talvez, no crescimento de passar esse tempo longe, cresci um bocado para entender que o excesso não é sinal de fartura e abundância. São muitas vezes apenas tentativas de se preencher outros vazios. Na teoria, a maioria de nós já sabe disso. Viver a mudança na pele mostra a teoria por outros ângulos de descoberta.
O regime de um corpo grande demais me acompanha desde os vinte e poucos. Na verdade, o regime me acompanha desde muito mais nova, mas só descobri que esses também eram exageros de uma família que via num corpo normal e saudável a falta da magreza desejada. E, para suprir a falta, aparecem os sedutores excessos no caminho. No texto, o mestrado me empurrou de forma a me fazer parar de fugir de certas etapas. Nunca gostei da revisão e edição dos textos. Eu amava primeiro a criação. O inventar. Aquele início de nada, quando há só a faísca de uma ideia que nos põe em rebuliço para começar.
Depois, amava também o desenrolar da história. Ir descobrindo junto das minhas personagens que caminhos pegaríamos.
Outro dia, por coincidência, me deparei com essa foto com alguns desenhos que fiz durantes as escritas de dois livros… essa parte de simplesmente imaginar e ir encaixando as peças é muito gostosa.
Por fim, a revisão eu delegava (como deve ser mesmo, olhos frescos enxergam além da cegueira de quem escreveu). Mas admito que recebia a revisão com preguiça de retornar ao texto e fazer a análise. Provavelmente por isso que eu não falo sobre meu primeiro livro. Adoro a história que criei, o enredo, o desfecho, as personagens. Inclusive dei o nome da minha gata em homenagem a uma das personagens nele: Mazal. Porém, pela pressa, e talvez também um pouco por aquela preguiça com a revisão, não conferi direito o que a editora me retornou, e o livro saiu repleto de erros ortográficos e algumas repetições de palavras. Pode parecer bobagem para uns, mas para a gente que escreve e publica (ou para os que se importam com a qualidade do que publicam) é um pesadelo.
Me lembro como fui do céu ao inferno em poucas horas ao receber a caixa com os primeiros exemplares, meses depois. Abri-las, ver materializado meses e meses de um trabalho que eu estava começando a descobrir ainda, entender de uma vocação em mim a qual eu me atentava somente ali no começo dos meus vinte e poucos anos. Na mesma velocidade em que essas emoções me tomaram, veio junto a descida de ponta com os primeiros erros que fui encontrando. Aquela noite chorei calada enquanto o Luis dormia ao lado. Me lembro dele acordando em algum momento, preocupado, sem entender. Talvez tenha seguido sem entender a intensidade do meu choro até hoje. Porque o filho era meu, o livro era meu, a responsabilidade daqueles erros não era só minha, mas ter prestado mais atenção nelas sim. Não foi por falta da revisão em si, porque houve de outros profissionais. Foi por falta de conferência do arquivo com a editora na época. Estava envolvida demais na conquista de provar a mim mesma e a alguns ao redor que minha escolha não havia sido em vão, que não era um capricho ou um erro de percurso largar um trajeto feito até então e rever a jornada, escolher outros caminhos. Foi pela sofreguidão para curar um lado, junto ao amadorismo de quem está dando o primeiro passo apressado, uma mordida grande demais, uma fome descomunal para o tamanho do estômago que gerou isso tudo. Hoje, entendo. Dez anos atrás, me acertou em cheio. Talvez por isso tenha sido a publicação que mais coisas me ensinou.
Pela edição do texto, eliminamos os excessos. Palavras que distraem o leitor do que importa de verdade, como os clichês gostosinhos, aqueles que até soam legais inicialmente, mas não contribuem em nada para a melhoria da história. Muitas vezes até pioram. O mestrado me forçou a superar a preguiça da edição. Uma vez que fiz isso, tenho passado a entender a graça da coisa. É muito satisfatório encontrar caminhos na língua em busca de substituir uma frase batida, uma palavra repetida, uma conjugação exausta do uso frequente. Esse corte de excessos traz saúde para o texto, para a mente, para o corpo.
É delicioso comer porque se está com fome, e se sentir alimentada depois, ao invés de preenchida ao máximo na tentativa de se distrair de si mesma. É maravilhoso doar mais da metade do guarda-roupas para pessoas que eu sei que vão fazer muito mais uso daquilo do que eu, que deixei aquelas roupas pegando poeira por mais de um ano e nunca senti falta, nem mesmo lembrei que elas existiam.
Sendo assim, a vida de volta está com um gosto diferente. Aqui tenho minha comunidade e dentro dela gostamos do exagero mineiro. A mesa farta, a fala prolixa, as risadas também (e que bom!). Nem por isso é fácil voltar para tanta fartura, porque no excesso a gente se perde de si assim como o leitor se perde do texto.
Tenho a impressão de que essas idas e vindas com os excessos continuarão sendo parte do meu caminho, porque é a vida que conheço, para o bem e para o mal. O lado maravilhoso, porém, é que tenho amado descobrir que sim, agora mais próxima dos quarenta do que dos trinta, eu consigo sim revirar minha vida, revirar o meu corpo, revirar o meu texto e aprender a reestruturar essa balança, buscando o equilíbrio que cada dia me chama e encontrando na própria busca dele o que é possível naquele mesmo dia entregar. Às vezes, a balança cai pro lado do clichê com gosto de Mc Donalds, às vezes ela pende e até alcança o tesouro de sabores reais dentro das subcamadas que poucas palavras conseguem passar.
Algumas indicações que fizeram minha cabeça nesses tempos de idas e vindas:
Pedro Páramo, do Juan Rulfo foi um dos primeiros livros que li, uns nove anos atrás, quando comecei a estudar escrita e literatura. Esse mês o peguei para reler.
Ler livros que você leu anos antes é uma experiência à parte. Principalmente quando nossa memória avisa que foi uma experiência desafiadora. Com outra cabeça, outra experiência, o lado desafiador pode até continuar, como continuou nesse caso, mas os encontros são outros. A indicação é pelo livro e pelo convite: releia.
Um dos filmes que assisti esse ano e mais ficou comigo foi o Boa sorte, Leo Grande. Para revermos que sempre há tempo de voltar e redescobrir.
Assino inúmeras newsletters e não tenho conseguido ler nem metade. Queria muito. Queria ler mais rápido, ler com mais foco para diminuir as chances de perder tantos encontros maravilhosos através dessas crônicas que habitam minha caixa de emails. Em uma tentativa de buscar pelas que estava sentindo falta, me deparei com a de Aline Valek ali nas não lidas. Coincidência, o tema da news dela me puxou na hora, afinal, eu mesma tinha acabado de escrever sobre, mas com outro ponto de vista. E que delícia foi lê-la.
Eu não sinto o tal FOMO (fear of missing out) com quase nada. As newsletters que não leio são das poucas coisas que entram nessa exceção. Afinal, imagina se eu tivesse perdido essa.
Falando em ler com mais foco, ouvi um episódio do Prelo, podcast do Tiago Novaes, na semana passada e achei precioso. Estamos mergulhados nesse oceano de excessos de informação e ausências do que mais queríamos. De alguma forma, saber desse barco compartilhado acolhe e assusta ao mesmo tempo. Entender ajuda a melhorar.
É isso. De volta a Beagá, aprendendo a ser eu, agora em outro lugar.
Beijo pra vocês,
Cleu
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