Há uma crença ao nosso redor sobre a criatividade. Não sei se já repararam, mas a criatividade é dessas coisas, assim como a escrita, que as pessoas acreditam ou ter ou não a habilidade, ou pior: o dom.
Na nova turma do Entrelaços, meu curso de escrita criativa, no primeiro encontro cerca de 40% dos participantes se apresentaram ressaltando o fato de não se considerarem criativos.
“Trabalho com engenharia e não sou nada criativo, mas quis experimentar”
“Eu sempre trabalhei com a escrita mais técnica. Sinto que não sou criativa, mas gosto tanto de escrever e aí quis arriscar”
“Na verdade eu vim, mas estou muito nervosa, porque acho que não vou conseguir escrever nada porque não sou nada criativa”
Essas foram algumas das falas que ouvi três sábados atrás, na nossa primeira aula. Ao fim desse encontro, me senti feliz por ter notado essas mesmas pessoas se despedindo com um sorriso e talvez até um certo alívio que perpassava pelo ainda bem que não estou sozinha nessa, ao encontrarem outros “não criativos” no curso, mas também terem, talvez, saído do encontro com uma fagulha acesa de que sim, criatividade também se constrói e ainda bem que eu me dei essa chance.
Antes de adentrar no assunto, fiz uma pesquisa para essa newsletter através de artigos científicos e livros. Alguns destes textos também se debruçaram sobre a relação do cristianismo nas crenças sobre a criatividade, mas escolhi não focar nesse aspecto. Meu olhar para o assunto, porém, não limita as várias outras possíveis interpretações e possibilidades. A análise histórica unida à psicologia foi apenas a que mais me interessou. Puxa a cadeira, pega o café e vem contribuir com a conversa no final também.
“A ideia de uma criatividade humana surge primeiro na antiguidade e é definida, principalmente, relacionada a criatividade artística. O termo poesia era usado para se referir a isso. Poesia e criatividade na antiguidade eram sinônimos”
Artigo Cultural and historical development of human creative idea
Na Grécia antiga, as pessoas acreditavam que a criatividade era algo vindo do divino, de algo externo muito distante, passado para pessoas através dos daimons, espíritos da mitologia grega que transmitiam visões, mensagens do deuses para os humanos, mas somente para aqueles escolhidos. Uma dessas iluminações que eles davam às pessoas era o dom da criatividade, da arte. Na Roma antiga, algo parecido atuava, com o nome de genius, um ser invisível que vinha e iluminava o trabalho do artista, do filósofo.
No artigo Daimon, creativity and science, a autora e pesquisadora Ana Bazac explica o caminho histórico em que as etapas para a aquisição de conhecimento e descobertas passaram, através de definições variantes sobre consciente e inconsciente. Usando de seu artigo – mas não somente-, vasculhei esses conceitos para percorrer o caminho até a nossa conversa sobre criatividade, a fim de responder: criatividade é um dom ou ela se cria? E alerta de spoiler: eu estou determinada a te provar que ela se constrói e é para todos que a desejam!
Tradução livre: Começamos com tudo: tudo visto, tudo feito, tudo pensado, tudo sentido, tudo imaginado, tudo esquecido, e tudo que permanece não dito e não pensado dentro de nós. Ricky Rubin.
Se antes a criatividade era um dom divino dado a alguns escolhidos e transmitido pelos espíritos daimons, isso também significava que a pessoa iluminada não levava nem o mérito de uma obra genial, tampouco seria duramente julgada por uma obra mediana a ruim, afinal, a responsabilidade estava compartilhada entre tal pessoa e os deuses. Muitos anos depois, no período renascentista, o período de transição entre Idade Média e Idade Moderna na Europa, nós vemos o ser humano sendo colocado como centro do universo pelo humanismo e o racionalismo, pensamentos que vigoravam na época.
Assim, o dom da criatividade não mais era dado pelo divino, mas nascia com o ser. Os humanos deixaram de ser abençoados pelos espíritos “geniais”, para se tornarem os próprios gênios. Leonardo da Vinci, por exemplo, é uma das grandes referências de artista renascentista que, por dominar a matemática, física, ser arquiteto, pintor, escultor e inventor, foi considerado um gênio absoluto.
Muitos anos depois, o filósofo alemão Arthur Schopenhauer vai dizer no livro The World as Will and Idea (1844) que a vontade surge do inconsciente, mas a vida e suas vontades são visíveis através dos esforços da consciência.
Até então, o inconsciente significava aquilo que persiste na pessoa, e a consciência seria como um trampolim de acesso à criatividade. Isso significava que a criatividade seguia sendo algo muito misterioso e intrínseco à pessoa, ao seu inconsciente. Em outras palavras: difícil de acessar aos não iluminados. Segundo o artigo de Bazac, é quando ocorre uma integração de estudos científicos e filosóficos, quando se passa a ter um olhar interdisciplinar onde disciplinas “distantes” se abrem a diversos assuntos, englobando estudos de psicologia, ciências, filosofia, artes é que as perspectivas passam por uma nova mudança onde entende-se:
Consciência é intencionalidade.
Intencionalidade supõe, portanto, vários níveis de percepções e conhecimentos. O inconsciente passa então a ser entendido como a sedimentação, o depósito profundo das experiências culturais, das relações da pessoa com o mundo. Em outras palavras: menos divino e mais vida real. Como se a consciência fosse um todo, um globo enorme, e o inconsciente fosse uma espécie de fantasma que faz parte, que habita esse espaço. Portanto, para criar, para se alcançar o seu ser criativo, o que precisamos é da consciência, porque quanto mais consciente de si e dos arredores, mais se consegue acessar o próprio inconsciente.
Pausa para trazer outro ponto de vista para a conversa.
No livro The Creative Act: A way of being (O ato criativo: uma forma de ser), o produtor musical Rick Rubin já começa o livro avisando: nada que ele escreve ali é uma verdade ou baseado em fatos, mas sim no que ele notou na vida e na própria carreira.
Rick Rubin já foi chamado de diversas coisas, entre elas de o “profeta do rock”. A lista de seus marcos profissionais é enorme. Ele contribuiu para popularizar o hip hop, produziu discos que estouraram no mundo todo como dos Beastie Boys, LL Cool J, Metallica, Red Hot Chilli Peppers, System of a down, Johnny Cash e tantos outros. Além disso, em 2007 foi eleito o produtor mais importante do mundo pela MTV e, no mesmo ano, entrou na lista das 100 pessoas mais influentes do mundo pela revista Time. Recentemente, fez um documentário fantástico com o Paul McCartney sobre os Beatles.
Quer dizer, o moço tem bala na agulha e publicou um livro belíssimo sobre criatividade. É um livro de leitura simples, gostoso mesmo de ler, onde ele conta das suas observações trabalhando com pessoas diversas do mundo da música e do cinema.
Um dos principais pontos que Rubin levanta por todo o livro – e aqui faço o círculo juntando ao olhar científico de Bazac – é: Awareness.
Estar consciente.
Consciente de si, consciente dos arredores. Esse é o principal caminho para a construção da criatividade, segundo Rubin.
“O presente da consciência nos permite observar o que está acontecendo ao redor e dentro de nós mesmos, naquele momento presente. É fazer isso sem apegos ou envolvimento. Observar as sensações no corpo, os pensamentos passando e os sentimentos, os sons ou as pistas visuais, cheiros e sabores.”
E aí, o Rubin fala algo que eu acho chave para nosso desenvolvimento enquanto seres criativos: apesar de não podermos mudar o que estamos notando, podemos mudar a nossa habilidade de notar.
Mudar algo é ter intenção sobre um ato.
Consciência.
O universo é tão grande quanto a nossa percepção dele, então se conseguimos trabalhar a nossa consciência para notar tanto o macro quanto o micro, como a aurora boreal ou uma mosca se debatendo na parede, expandimos as habilidades de construir possibilidades criativas tendo tudo ao nosso redor como uma opção de começo, de faísca para o que pode se tornar um incêndio dentro do peito e da mente querendo sair em forma de texto, de música, de pintura, de canto, de sabor. É o começo do acesso ao invisível, e esse invisível pode ter diferentes nomes, mas fato é:
ele é possível e acessível para além dos gênios.
Tá. E como que põe isso em prática?
Existem inúmeras formas de incentivo para esse acesso criativo. Construímos a criatividade ao notar o que nos cerca: conversas, a natureza, encontros, outros trabalhos de arte... Há pistas sempre abertas aos olhos de quem quer ver. E aos distraídos também, o problema é que os distraídos as perdem.
Todos nós carregamos para a vida adulta filtros impostos ou escolhidos ao longo da criação. Reduzir esses filtros das nossas crenças já estabelecidas permite também ter mais acesso às possibilidades criativas ao redor. Como? Terapia sempre ajuda hahaha mas outras coisas também, como os rituais diários, por exemplo. As páginas matinais, já bastante estabelecidas são uma boa fonte de escrita sem filtro para acessar o inconsciente.
Os Sonhários, ou seja, um diário de sonhos, que você escreve imediatamente ao acordar, ainda naquele estado entre, ou mesmo que já acordado, mas que não deixe passar mais que poucos minutos para não perder de vista os sonhos.
Um outro, esse mais inédito, uma descoberta recente, é um exercício para soltar a raiva e fazer cair os filtros. Foi uma dica do próprio Rubin no livro. Ele não deu o nome a esse exercício, mas eu darei, vamos chamá-lo então de Socário. Basicamente ele consiste em você socar, mas bater mesmo, com vontade, num travesseiro durante cinco minutos ininterruptos. Cronometre para ter certeza dos efeitos. Depois, escreva cinco páginas com o que sair.
Nos cursos, eu escolho a fotografia como uma das grandes ferramentas para despertar possíveis textos nos alunos. Além disso, propostas já conhecidas, mas muito eficientes como abrir um livro numa página aleatória e escolher uma palavra dali como ignição, ou escolher uma frase completa e dar sequência na história, essas também são formas de despertar ideias diferentes na mente.
As táticas são várias, essas são só algumas que eu pratico, tanto em sala quanto para meu próprio processo de autoconhecimento, de escrita e de criatividade. São ações que fazemos para construir consciência, abranger nossa habilidade de observar o entorno, observar a nós mesmos, acessar esse lugar secreto de si. Tudo isso vai contribuindo para construirmos nosso ser criativo. Rick Rubin comenta, inclusive, que essa construção de consciência precisa ser sempre renovada, o que também se une aos estudos de Bazac sobre conhecimentos e descobertas retroalimentando a consciência/inconsciência.
Existem os gênios?
Acho que sim. Acho que realmente têm pessoas que alcançam a maestria como se fossem ali na padaria. E há ainda mais os que acreditam ser gênios sendo menos que ordinários. Mas entre um, outro e o resto de nós, mortais, há o querer. O desejo de ser, de exercer.
O escritor Jeferson Tenório disse que o desejo talvez seja das poucas coisas que não se enlaça, não se amarra, ainda que tentemos. Abafar a vontade de ser criativo, de usar da criatividade por não acreditar ser capaz, por achar que não carrega esse traço de nascença é muito triste. Não aceito! Abre o caderno, vai para a rua, escute uma música, (faça meu curso ;), mude de ambiente. Se faça consciente do universo ao redor e o labirinto dessa coisa que é criar vai se abrir.
A página em branco é só um dos convites de como entrar, mas que convite maravilhoso, não?!
Com carinho,
Cleu
Falou tudo, Cleu! Eu ainda fico me perguntando se existem mesmo gênios… fico pensando mais em vocação. Algumas atividades tem disso neh, a pessoa tem uma vocação, um chamado, e com isso vem uma vontade mais forte que talvez a leve a ser considerada “gênio”
Excelente reflexão! Concordo totalmente que criatividade é um exercício diário. É claro que há quem nasça com mais facilidade para acessá-la, mas ela está aí pra quem quiser e souber observar :)