“Ele fixaria em Deus aquele olhar verde-esmeralda com uma leve poeira de ouro no fundo. E não obedeceria porque gato não obedece. Quando a ordem coincide com sua vontade, ele atende, mas sem a instintiva humildade do cachorro, o gato não é humilde, traz viva a memória da liberdade sem coleira. Despreza o poder porque despreza a servidão. Nem servo de Deus. Nem servo do Diabo.” Lygia Fagundes Telles
É engraçado conhecer novas pessoas na vida adulta, porque no caminhar da construção de uma nova amizade você precisa passar pelo básico “Seu nome e seu bairro”. Quando adultos, muitas vezes nós percebemos esses passos acontecendo. A cada encontro aprofunda-se mais o que mostra, o que conta, seja de forma consciente ou não. E isso, é claro, nos relembra da nossa própria trajetória, por vezes esquecida nas gavetas do passado.
Talvez seja essa uma das razões das pessoas dizerem que fazer amizade depois de certa idade é mais complicado. Afinal, tem dia que a gente tem preguiça até para respirar. Imagina passar por todas essas etapas. É igual começar terapia do zero. Você finalmente chega num ponto com o terapeuta que ele está atualizado sobre sua vida tanto quanto o seu eu da superfície consciente. Só que para chegar nisso são alguns longos anos até o momento sofá, chazinho, terapeuta ali na frente, que delícia, você está superconfortável.
Acontece que, na terapia, se você está confortável demais pode ser um sinal de que é hora de mudar. E isso significa... “Seu nome, seu bairro e também seus fantasmas mais profundos, por favor, muito prazer, obrigada.”
Na minha primeira graduação, eu brincava que fui fazer veterinária porque não gostava de gente. Ninguém nunca acreditou, porque, apesar de tímida em vários aspectos, sempre fui muito sociável, na verdade eu AMO gente. Mas era aquela coisa: amo mais bicho, então vou fazer veterinária; escolha óbvia.
Obviamente errada!
Me lembrei desses trajetos esses dias, conversando com uma amiga da Irlanda. Enquanto nos atualizávamos sobre nossas vidas, nos conhecendo mais um pouco, etc e tal, percebi que eu mesma havia esquecido que cursei veterinária. Ela ama gatos assim como eu, então ficamos ali falando dos nossos, mostrando fotos, tutuquinha pra cá, nhonhonhon pra lá. Nas lembranças dos meus dias de vet, contei para ela como os gatos têm um sistema dentro dos ouvidos que lhes permitem ser hipersensitivos com seus arredores. Eles percebem a posição do próprio corpo, o movimento e tem um sentido espacial muito mais aguçado. Isso os deixa mais conscientes sobre o espaço acima e abaixo de seus corpos, dando a eles (rufem os tambores) a fama de sempre aterrissarem nas quatro patas, sem se machucarem. Mas… nem sempre também.
Observar um gato é um show por si só. Eu sou muito da crença de que quem fala que eles não são fiéis ou carinhosos é porque provavelmente nunca conviveu com um. Os bichanos são uma bola de afeto ambulantes, com a cereja extra de ainda estarem sempre limpos. Só que eles têm personalidade e, acho que antes de nós, humanos, eles dominaram a arte de dizer Não.
Não, não quero.
Não, não vou.
Não, agora não.
Não, não se mexa, a perna é sua, mas o colo é meu.
E por aí vai.
Gente, isso é demais. Afinal, um grande atalho para a gente saber o que gosta é começando pelo que não gosta. Esse talvez seja o primeiro ensinamento deles.
Dia desses, remoendo a saudade do Tole e da Mazal, e da Bambonina, minha eterna companheira, fui pesquisar de onde surgiu essa fama da relação de séculos (ou milênios) entre escritores e felinos. E se é que é verdadeira mesmo.
De cara, é muito fácil encontrar várias referências dos milhares de autores que tinham/têm gatos como fiéis companheiros, e que também os retrataram na literatura. Eles aparecem como personagens, como narradores, como referências, como musas...
“Ver-me com meu gato suavizou-me aos olhos das pessoas. Ele me humanizou. Especialmente depois de eu ter sido desumanizado. De certa forma, ele estava devolvendo minha identidade.”
Um Gato de Rua chamado Bob, de James Bowen
… e também como seres reais que salvaram a vida de alguém, como no caso de James Bowen, um ex-drogadicto que, após encontrar um gato de rua, deu-lhe o nome de Bob e nele achou a motivação para resgatar a si mesmo do fundo do poço.
O último romance completo que escrevi foi minha primeira tentativa de escrever uma fantasia. Eu tinha uma ideia e quis ver se conseguia conquistar o Everest que é desenvolver uma fantasia. Consegui parcialmente, ficaram alguns furos e faltaram algumas coisas para dar aquele tchã da fantasia. Ele está lá, engavetado e, se um dia eu sentir vontade, retomo sua escrita, porque a fantasia nunca foi meu objetivo de fato.
Na época, o usei como fonte de estudo para ver até onde ia minha própria habilidade naquele momento. O que importa aqui e o motivo deu estar comentando foi que, nas pesquisas para essa fantasia, li muito sobre alguns deuses egípcios. Entre eles, lá estava ela, a Deusa Bastet.
Bastet é uma deusa felina adorada durante a maior parte da história do Egito Antigo. Sua figura passou por algumas transformações ao longo da história, indo de uma figura mais próxima da leoa, sendo considerada uma deusa protetora e da batalha, depois adquirindo uma imagem mais pacífica, quando os felinos passam a ser domesticados pelos egípcios e, assim, Bastet assume um lugar de proteção e amor à família.
Para os escritores contemporâneos, os gatos seguem trazendo uma mistura de sensações. Sejam os mistérios e o misticismo por trás de suas ágeis pupilas e reflexos certeiros, ou pelo seu silêncio e um ar de que compreendem muito mais do que jamais conseguiremos, tanto sobre si, quanto sobre a vida como um todo. O escritor argentino, Osvaldo Soriano, os definiu, em poucas palavras, talvez da melhor maneira que eu já encontrei:
Ele disse que não é possível privatizar um gato.
O mundo atual valoriza uma vida de superprodutividade, onde as pessoas acham bonito criar hashtags no estilo “enquanto-eles-dormem-eu-faço-meus milhões”, uma prática que vem se mostra,do cada dia mais insustentável e nosciva. Nesse aspecto, os gatos também nos ensinam muito. Charles Bukowski admirava-os justamente pela capacidade de dormir até 20 horas por dia, “sem hesitação e sem remorso”. Já Jorge Luis Borges considerava a relação entre escritores e gatos como uma aliança entre seres livres.
Talvez esteja aí a cumplicidade entre a literatura e os felinos. A escrita não se apressa. Ou, se a apressam, a tendência é que a página repleta de palavras e tinta esteja até mais vazia do que antes. Não digo da pressa de despejar o que há em você para fora. Essa é até muito bem-vinda, vem sem freio, como um vômito emocional do que precisa ser escrito para ser elaborado. E quando faz isso com técnica, estilo e muita verdade é quando encontramos nossos tesouros literários.
Não, eu digo é da pressa pelo final, pelo escrever só para dizer que escreveu, escrever só para publicar e vender. Esses, raramente passam da superfície do que um texto pode ser. E posso falar com propriedade: não é atoa que aquela fantasia está engavetada. Parte de sua escrita foi feita com a vontade de escrever uma fantasia. Mas antes do subgênero, da classificação de um livro, o que importa é o texto e a hbistória que ele conta. A linguagem, a vontade real de dizer algo, de elaborar um tema que toca o autor de verdade, um personagem, uma escrita.
Um contraste que venho vivendo, em compensação, é que depois dessa fantasia já escrevi três cadernos de poesia no último ano. É que eles não são feitos para os outros ou para dizer que fiz. Há nove meses respiro-os e escrevo praticamente todos os dias em suas páginas. Eles existem, porque através deles eu aprendo a também existir na minha essência mais verdadeira, e, como diria Clarice,
como um gato de dorso arrepiado, arrepio-me diante de mim mesma.
Mas o mistério de onde esses poemas vão chegar e quem poderão alcançar, assim como o que há por trás do olhar fixo de um gato numa parede branca, isso eu ainda não sei dizer.
“Eu tudo sei, a vida e o seu arquipélago,/ o mar e a cidade incalculável,/ a botânica/ o gineceu com os seus extravios,/ o pôr e o menos da matemática,/ os funis vulcânicos do mundo,/ a pele irreal do crocodilo,/ a bondade ignorada do bombeiro,/ o atavismo azul do sacerdote,/ mas não posso decifrar um gato”.
Pablo Neruda
Indecifráveis, de fato…
Por aqui, entre as muitas escritas do dia, no momento o meu Everest mudou de nome e chama-se dissertação. Sendo um mestrado criativo, essa dissertação me permite explorar a minha própria escrita também como fonte de estudo para o trabalho final. E, devo dizer que, por mais que isso seja maravilhoso, talvez o que falte no meus dias para conseguir dar um gás a mais na bendita, é o que Aldous Huxley haveria de concordar:
“Se quiser escrever, arranje um gato”.
Mas lembre-se: adotar é sempre melhor <3 e se quiser indicação de com quem adotá-los, pode me mandar mensagem porque eu conheço vários projetos e pessoas com coração de ouro e muitos gatos precisando de um colo.
Seguirei sem meus meninos roçando pelos meus calcanhares por mais alguns meses. É preciso muita resiliência para escolher ausentar-se por um ano do próprio lar, mas - e me desculpem ser piegas -, é que, ao menos tendo a literatura comigo, eu nunca me sinto 100% só.
Sim, se você está se perguntando, essa newsletter virou uma carta aberta de amor aos gatos. Especialmente os que fazem parte da minha família. Então não vou me despedir sem antes deixar umas fotos dos meus chamegos também, porque a gente não é de ferro <3
A tricolor é a Mazal, 100% pirada e amorosa. E o branco de orelha preta é o Tole, 1.000.000 % dependente emocional. Assim como eu deles.
Recado:
Por 12 edições, essa news saiu +- a cada 15/20 dias, mas desde a última (Você está prompt?) e com a chegada da dissertação tive que espaçá-las mais. Nesse mês de Julho vou dar um tempo para descansar, ver meu pai depois de séculos (saudades, pai!) e focar em alguns projetos paralelos.
Agosto retomo a news com força (e provavelmente loucura total), já que será final de mestrado, retorno ao Brasil, muitas lágrimas e fotos de todas as emoções que esse corpinho dá conta.
Até breve,
Cleu :)
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Adorei Cleu. Muito bom essa história envolvendo gatos e a escrita.
bom descanso! e vida longa aos gatos <3