Seja qual for o uso nas sociedades civilizadas, os espelhos são essenciais para todas as ações violentas e heroicas. É por isso que tanto Napoleão quanto Mussolini insistiam tão enfaticamente na inferioridade das mulheres, pois, se elas não fossem inferiores, eles deixariam de crescer.
Virginia Woolf em Um teto todo seu
Essa newsletter atrasou por um motivo: era para ser sobre Van Gogh e umas viagens acerca da arte, da tecnologia e claro, da inteligência artificial também! Porque para quem escreve ou fotografa ou atua em basicamente qualquer outra área (essa é a sensação, né?!) esse tema tem sido muito relevante, inovador e até mesmo assustador.
Mas, no meio do caminho, já com a news quase pronta (vai sair na próxima edição) percebi que precisava pausá-la. Primeiro, para eu mesma entender melhor o tema; segundo porque outro assunto me puxou.
Ainda existe essa tal literatura feminina? E está tudo bem usar essa classificação?
Março é celebrado o Dia Internacional da Mulher, mas eu diria que talvez ele não seja tão internacional assim... Aqui na Irlanda do Norte foi um total de zero consciência sobre o dia, sobre os porquês do dia, sobre a necessidade do dia, sobre questionamentos que o dia traz e o constante “rever” que ele pede.
E olha que minha universidade é bem engajada em temáticas atuais (ou antigas, no caso). Mas nem mesmo ela demonstrou muito interesse.
Isso me levou a pensar: o que isso diz de nós, brasileiros, enfáticos em lembrarmos o que é, para que é, por que é importante manter esse dia sendo, para além de celebrado, revisitado ano após ano. E o que diz daqui? É um ponto positivo ou seria um atraso? Positivo no sentido de não precisa mais. Chegamos num pé de igualdade, de valorização salarial, de respeito, de condições, de oportunidades, que não precisa mais separar um dia para questionar ATÉ QUANDO?!!
Honestamente, tenho pouco tempo de Irlanda para responder qualquer uma dessas perguntas, então não me atreverei, mesmo que soe boa demais para ser verdade essa última opção. O que posso compartilhar é sobre minha experiência aqui que me levou para esse ponto específico em relação à literatura e as mulheres.
Esses tempos procurei um professor para me ajudar com um texto. Na verdade, ele é o professor que eu menos gosto (para falar educadamente) mas, ao mesmo tempo, e talvez por esse motivo, ele seja o que mais me estimula a querer superar minhas dificuldades. Não para me provar a ele porque, honestamente, não significaria muito para mim esse mérito. Mas sim para entender a origem de certas opiniões dele que me soaram como não sendo ok. Mas será que não são ok mesmo?
Resumo da obra: ele classificou um texto meu como literatura feminina, ideal para clubes de leitura. Depois, complementou: sabe, clubes de livro adoram esse tipo de escrita, estilo Elena Ferrante. Bom, se citou Elena Ferrante no exemplo foi só alegria para mim, afinal ela (que ninguém sabe se é ela, ele, elu) é uma das grandes escritoras da atualidade. E não digo pela fama em si, mas pela qualidade da sua escrita. Então, alegria, alegria à referência comparativa. Não fosse o fato desse jeitinho especial dele ter classificado em “literatura feminina”. Será que existiu um tom de menosprezo ali, ou por aqui está tudo bem o uso do rótulo?
E, para além disso, fiquei me perguntando onde está o preconceito nessa situação toda: nele, em classificar assim ou em mim em receber a classificação com gosto ruim na boca, com sabor de menos valia.
Então pausei as viagens pelos girassóis de Van Gogh para mudar o curso da newsletter, aproveitando o estímulo para entender um pouco mais antes de julgar a mim mesma e ao meu professor, tendo como base de todos esses questionamentos a seguinte pergunta:
Afinal, o que é a tal literatura feminina?
No Brasil, percebo que o termo já não é mais aceito, uma vez que separa e desvaloriza a escrita de mulheres, as enquadrando em certas temáticas, nos colocando em um lugar rebaixado à literatura padrão, ou seja, aquela feita por homens. Por isso, ao escutar do professor o rótulo, automaticamente fui para a recepção negativa.
Aqui na Irlanda e no Reino Unido, porém, ainda parece normal usar essa classificação. Ainda que possa soar como uma desvalorização, ao menos nos meus ouvidos de mulher brasileira, mas minhas colegas não parecem se importar tanto.
Uma curiosidade irônica para nossa conversa aqui é que um dos livros mais citados no mundo sobre esse o lugar, ou melhor, a ausência de lugar imposta às mulheres na literatura (brancas, no caso, que ainda tinham e tem seu privilégio) foi escrito pela inglesa Virginia Woolf, o famoso Um teto todo seu. E a Irlanda do Norte faz parte do Reino Unido, sendo bastante influenciada e direcionada pelos costumes ingleses.
Quando um homem escreve sobre experiências que o interessa, sua escrita é classificada como LITERATURA. Quando mulheres escrevem experiências que as interessam, são rotuladas como literatura feminina. De onde partiu isso? Para responder, resolvi fazer um panorama a partir de alguns artigos que li em busca de encontrar as origens pelo ponto de vista de uma autora brasileira, e entender se, ainda hoje, ele carrega a mesma conotação.
O romance por si, segundo Baktin, é capaz de congregar múltiplas visões de mundo sem seguir uma forma rígida e pré-determinada.
Como eu citei antes, Virginia Woolf, lá na década de 30, já levantava a importância de, através da proximidade com o cotidiano e com a fala, tornar possível também transmitir a experiência da mulher sem o aprisionamento de regras do cânone literário, já que, até então (e isso continuaria por muitas décadas ainda) lhes fora proibido aprender ou escrever literatura.
No artigo Rachel de Queiroz: mulher, escritora, personagem escrito por Natália Santana Guerellus, Natália relembra como no final do século 19 havia uma construção de um ideal burguês de sociedade e família, tendo como padrão países europeus. Vivíamos a consolidação do capitalismo, a reorganização das vivências familiares e domésticas.
No Brasil, as mulheres ainda eram muito reclusas aos ambientes da vida rural, mas com essas mudanças e influências europeias, elas passam a ter uma vida social e urbana, ainda que mantendo em seu centro o marido e a família.
Mulheres de elite, educadas nessa nova forma de sociedade, passam a constituir o maior público leitor da República Brasileira, e, por consequência, passam também a pensar sua própria existência através da escrita.
Ao final do século 19, as mulheres não se limitavam mais a somente pensar e existir passivamente, focadas apenas na sua vida doméstica. Para além disso, tendo essa influência de mulheres europeias e privilegiadas, passam também a trazer para a pauta assuntos ligados às mulheres como maternidade, o cuidado com a casa e com a família. E mais: passam a questionar o casamento, a falta de representação política, a repressão sexual.
Paralelamente, no nordeste brasileiro, o ambiente rural das grandes fazendas com suas plantações de cana de açúcar e sustentadas por escravos fortalecia a imagem patriarcal e a hierarquia que dominava a vida ali. Era a hierarquia de cor, de classe e de gênero, tendo em seu topo o homem branco dono de terras. E a mulher branca vinha abaixo, sendo o ideal de mulher no sertão, tendo tido o privilégio ao menos terem documentos, fotos, inventários, diários e histórias contadas, o contrário de todas as outras.
Uma dessas mulheres foi Rachel de Queiroz. Ela publica seu primeiro livro chamado O Quinze em 1930, com 20 anos de idade. O livro retrata a seca do nordeste em 1915 e conta da realidade de retirantes nordestinos. A autora foi, inclusive, questionada de que na verdade quem escrevera a história teria sido seu pai ou algum outro homem mentor, de jeito nenhum ela teria a capacidade para aquilo.
Sua escrita influenciada pelo modernismo carregava a simplicidade, a clareza e a objetividade do texto. Muito anos depois, em 1977, pela primeira vez a Academia Brasileira de Letras nomeou uma mulher como membro da ABL.
A escolhida foi ninguém menos que Rachel de Queiroz, autora cearense.
Com as mulheres deixando de serem apenas leitoras e passando a ter uma produção literária, passa-se a haver no mundo todo uma separação através de um estereótipo sobre o que seria literatura feminina,
escrita por e para mulheres.
Temas como maternidade, beleza, moda, sexualidade, sentimentalismo entravam nisso. Mas, mesmo quando abordando temas políticos como o direito ao sufrágio e cidadania, ou a seca no nordeste como Raquel de Queiroz, ainda assim isso entrava para o rótulo literatura feminina, por incomodarem a moral dos homens escritores. Assim, isso acabou se perpetuando por décadas até os dias de hoje.
No Brasil, há anos eu vejo muitos posicionamentos em um movimento literário de parar esse rótulo, uma vez que ele ainda vem bastante carregado com esse olhar antigo de que mulheres só falam com mulheres, enquanto homens falam com todos.
Quando eu recebi o retorno sobre meu texto daquele professor, junto do rótulo de literatura feminina, eu fiquei confusa. Não entendi se aquilo estava desvalorizando meu texto, ou apenas aqui eles ainda usam essa classificação, muito mais do que no Brasil.
Marquei uma reunião com ele para entender e na conversa ele disse: é uma boa história que agentes literários adoram e clubes do livro se deliciam.
Saí da reunião mais confusa do que entrei. Bom, ao citar Elena Ferrante como referência, para mim foi um enorme elogio. Ao finalizar com literatura feminina me senti ofendida. Não por ser feminina ou mulher. Naquele momento, não sabia se havia entendido mal e meu sangue brasileiro foi quem reagiu, ou se senti corretamente como deveria, afinal, restou um cheiro de soberba no tom de sua fala, aquele jeitinho especial, reconhecível a milhas de distância por qualquer mulher.
Entre o questionamento de um julgamento equivocado do meu lado ou dele, ou minhas próprias confusões internas de quem tenta entender o mundo, as pessoas e a mim mesma — um dia de cada vez —, como sempre eu sigo carregando milhões de dúvidas interiores e algumas poucas certezas. Entre essas últimas: a resiliência de querer seguir aprendendo e evoluindo, junto do tremendo orgulho de quem foi ensinada desde cedo
a lutar como uma garota.
O que vai dar disso, desse livro, ou desse mestrado eu ainda não sei. Mas nunca escrevi algo com tanta vontade (e certo temor). Sendo assim, os traços que meu texto possa carregar virão da busca pela humanidade na minha escrita, e ser mulher é parte essencial da minha experiência humana. De forma alguma isso pode ser considerado um erro ou algo limitador.
Pelo contrário:
só me expande!
E por isso eu sou grata <3
Beijo pra vocês e até a próxima,
Cleu
Esse ano precisei começar um instagram do zero porque o antigo deu problema, mil tretas de MarkinZuck. Então, pra quem ainda não conhece, é só clicar abaixo. Lá eu posto conteúdos diversos sobre escrita e ocasionalmente sobre fotografia. Também compartilho muito da vida aqui em Belfast, na Irlanda do Norte, nessa cidade pequena que conquistou lugar enorme no meu coração.
Recomendações:
Tenho tido dificuldade de atualizar as leituras das news que assino e até mesmo do grupo no telegram que participo com escritores incríveis desse mundo das newsletters. Mas vou deixar 3 #ficaadica de newsletters que fizeram minha cabeça na última semana:
Essa edição da Aline Velak falou tanto do que eu sinto aqui, e de uma maneira tão gostosa de ler que recomendo muito a leitura.
Existem títulos e títulos. O título dessa edição da news do Thiago Ambrósio me abraçou em riso! E o conteúdo seguiu maravilhoso, com um tema que sempre me faz questionar também sobre essa coisa de constelar nossos gostos em estrelas de classificação.
Pelas coincidências da vida, terminei de escrever essa newsletter e, prestes a enviar, recebi essa edição da news da Anne Peterson, levantando estatísticamente pontos muito relevantes sobre a forma e os caminhos de homens e mulheres, seus estímulos e desestímulos e como isso tem nos levado a comportamento atuais bastante impactantes para o mercado, para educação e outras coisas mais. Valeu demais a leitura, inclusive fiquei bem impressionada com algumas informações.