Lá em casa, um casulo de borboleta se instalou entre as folhas do meu pezinho de amora. Esse pé de amora é pequeno, está plantado em um vaso que até outro dia eu carregava no braço. Hoje não consigo mais, pesou pelas reposições de terra ao longo dos anos. Me lembro que quando o plantei, esse pé de amora lembrava um bonsai pelo seu formato de tronco baixo e fino e uma mini copa de folhas até fartas para o pequeno tamanho. Uma miniatura de poucos centímetros do que poderia vir a ser uma árvore enorme em terra fértil. Foi crescendo mesmo sob essas condições. Se fosse gente, eu diria que é aquela pessoa que entrou para o crossfit, começou a tomar muito whey protein e hoje virou um pé mais encorpado, ainda baixo e atarracado, afinal está plantado em um vaso pequeno, mas substancial na sua vibe mini a la bonsai.
Um dia, regando as plantas e tirando as ervas daninhas que insistem em aparecer (batalha perdida há muito, ao menos foi uma luta melhor do que o Bambam, ainda assim o nocaute veio) notei o casulo instalado. A primeira vez que o notei foi há quase três meses. E só vi porque a lagarta do casulo estava de boa comendo as folhas da amoreira, tirando pedacinhos do galho para reforçar o casulo entremeado em seda, bem felizona e despreocupada com minha presença. Ela fazia seu trabalho e eu assistia.
No vídeo: meu primeiro encontro com ela, ajeitando o casulo e se fechando em seguida.
Depois do susto de imaginar quantas vezes devo ter quase tocado, passado o cabelo, esbarrado a bunda, trombado no inseto de relevante tamanho, veio o encanto. Uma semana antes, um marimbondo filhote começara a vir na janela da nossa cozinha todos os dias beber água do filtro (sim, do filtro! não da torneira, o bichinho sabia o que queria), então pensei que uma lagarta inofensiva e trabalhadora poderia ser uma companhia mais calma no pequeno jardim do apartamento. Era um refresco de vida entre as toneladas de concreto ao redor, não havia como negar a casa-amora a ela. Dei-lhe o nome de Robs e seguimos. Tudo estava lindo, eu e Robs convivendo passivamente. Até que, a cada dia, eu notava o pé de amora diminuindo. Robs come. Mas não come pouco. Por consequência, Robs cresce. Cresce, aumenta a casa-casulo, e, para aumentar a casa-casulo, lá vai ela com suas garrinhas recortar mais folhas, quebrar mais galhos, diminuir meu lindo bonsai crossfiteiro. Era como se o pé de amora fosse agora uma atleta que parou de malhar, estava murchando aos poucos à medida em que Robs pegava corpo.
Quanto maior Robs, menor o pé e mais conflitante a situação para mim. Cedi uma casa, os meses passando, e Robs tornou-se aquele parente que pede para ficar duas semanas no sofá e não vai embora nunca mais.
Então fui pesquisar o ciclo de vida da borboleta. Para quem não sabe, pode demorar até um ano para ela voar. No ritmo de Robs, em um ano o bonsai acaba. E o que eu poderia fazer? Nada, porque eu não neguei água filtrada para um marimbondo, também não expulsaria Robs dali. Porém, entendi de onde vinha, verdadeiramente, essa minha pressa dela ir embora. O processo entre lagarta e pezinho de amora nada mais é do que a natureza em seu pleno funcionamento, e isso é lindo de ver. Mas a pressa em mim vem de outro lugar, do não querer perder o voo, sabe? Comecei a sentir que se ela um dia acordar pronta e eu não assistir o descasulamento, o “abre-alas que eu quero voar”, seria como quando a série que você ama é cancelada sem ter finalização, após já estar emocionalmente envolvida e sonhando com as possibilidades. A presença de Robs reverbera em mim um meme que vi certa vez, na página Filosofia e Literatura:
Robs voar e eu ficar, Robs se libertar da casinha apertadinha e ir achar um Nobs para chamar de seu, fazer Robzinhas em outro lugar. Minha própria versão da natureza do tal FOMO (fear of missing out). Acontece que a natureza não tem pressa em seus ciclos e parece que esse ciclo de um ano da borboleta não é besteira, já veio Reveillon, Carnaval e alguns temporais, Robs até balança, mas não cai do pezinho. Continua inteira, cada dia maior, mudando o casulo de lugar de acordo com o clima. Aliás, achei isso incrível:
elas mudam o casulo de lugar.
Tão simples, mas para quem lê nos livros da escola, e eu fui pesquisar esse ano para confirmar, fica parecendo que uma vez no casulo o bicho vai ficar ali, estático, hibernado, imóvel e quase invisível para sempre, até um belo dia desabrochar na borboleta Bela Adormecida. Não, ela é bem da bela acordada, abre o topo, com as perninhas e a garrinha leva o casulo de ponta a ponta no pé a fim de deixar folha fresca e sombra sempre por perto, ou para pegar um solzinho e secar sua seda depois da chuva. No final, a crossfiteira da história é Robs, porque o casulo é grande e pesado em proporção ao inseto, e a bicha sobe e desce no pé com precisão. Fico admirada, até orgulhosa agora que nos tornamos conhecidas uma da outra!
Fato é que me inundei de expectativa, vou visitar Robs quase todo dia, notando suas mudanças, as mudanças no pé de amora e pensando o quanto isso reflete o oposto que a sociedade busca em tantos aspectos.
Desculpem a narração do vídeo, estava falando comigo mesma. O vídeo é de Robs já há dois meses instalada por aqui.
A natureza tem seu tempo. Nós aceleramos áudios e cortamos o tempo até da música, para tudo acabar logo e seguirmos com a vida. Nenhum gostinho de infinitude no caminho, o Deus do Rivotril que nos livre.
O produtor musical Felipe Vassao, por exemplo, fez uma análise sobre o desaparecimento do fade out das músicas no decorrer dos anos. Sabe aquele final da música que vai acabando, o volume vai diminuindo até virar um silêncio sutil? Pois é, o fade out. Ele comenta como, antigamente, o fade out era um jeito comum de terminar a música, tornando-se, inclusive, a principal escolha estética. Hoje em dia, quase nenhuma termina no fade out, pelo contrário, elas acabam num corte seco e repentino.
Uma das hipóteses é que, com o surgimento do cd, pudemos passar a música para a próxima, pulando o fade out para suprir nossa ansiedade. Outro motivo desse desaparecimento seria porque o fade out dá o efeito de um final eterno, como se fosse um caminho aberto, como se a música continuasse ali para sempre. Seja como for, parece que foi o começo do fim, ou melhor, o fade out do fade out.
Hoje, pelo que ele conta, a maioria das músicas pop simplesmente param, sem nem aviso prévio, sem um beijo de despedida, sem um olhar de saudade. Na opinião do Vassao, isso na verdade estimula a ansiedade porque é pá, acabou, segue em frente, anda logo, vaivaivai, próxima, não demora, não gaste segundos a mais. Ok, ele não fala assim, mas é a sensação. Os exemplos no vídeo são ótimos para entender melhor.
Isso também me lembrou da crítica negativa ao filme O mundo depois de nós, lançado no final de 2023 pela Netflix. Fui assiti-lo com expectativas conflitantes, pois já havia ouvido falar que o filme não era bom. Eu, pessoalmente, gostei. Mas o importante para a nossa conversa aqui é falarmos sobre o final.
“Por isso, o final desta aventura se tornou um tema de discussão à parte nas redes sociais e nos fóruns da Internet. Que absurdo, este filme não tem conclusão! Ele não termina! E o meu direito de consumidor, de terminar a sessão feliz, com as respostas desejadas? Como me contam uma história de mais de duas horas de duração, sem se preocuparem com a minha satisfação?”
Muito do que se criticou foi devido ao final aberto, aquela história que não te conta exatamente o que aconteceu, apenas deixa pistas, mas o leitor quem vai fazer suas conexões e tirar sua conclusão. Adoro isso. Talvez essa seja a versão com fade out dos filmes e livros, ele nunca acaba de verdade porque te mantém imaginando. Parece que hoje os leitores, expectadores e talvez ouvintes de música também, querem mesmo que acabe logo e de forma a ter tudo entregue, tintin por tintin. Na arte, gosto de estar à mercê, botar para jogo a imaginação junto ao que o artista nos fornece, para assim criarmos em nós as significações.
Não tenho dúvida que a natureza, — sim, essa grande natureza que nos rodeia —, é a maior artista do mundo. Ninguém elabora a criação melhor do que ela, talvez (ou COM ABSOLUTA CERTEZA) só errou um pouquinho no Homo sapiens.
Se Ela é essa grande artista, faz sentido que a Robs parta voo sem que eu veja também, deixando em aberto o fechar das cortinas e o abrir das asas, onde eu, como sua leitora-observadora, só poderei imaginar como vai ser o capítulo seguinte. Isso é também maravilhoso. É o lembrete de: segura a onda, Cleu, porque o fade out natural ensina muito, inclusive sobre arte, para quem está aberto a enxergar.
Beijo da Robs e meu,
Cleu
A pergunta é: como é que a gente vai dar conta de viver com esses cortes secos e cada vez menores das coisas?
Que texto incrível, Cleu!
Amo sua narrativa das coisas.
Fade out era muito bom e realmente deixava aquela sensação da música se afastando de nós, mas não terminando.
Que texto bom.
Espero que Robs esteja bem e fortinha.
Beijos