“Seu corpo não é só você...
...o humano tem apenas 43% de células humanas”
Escrever é perigoso, de Olga Tokarczuk
Esses dias, estava lendo o novo livro da Olga Tokarczuk, Escrever é perigoso. Nele, ela nos lembra que a ciência tem descoberto que o corpo humano é feito de apenas 43% de células humanas. Os outros 57% são uma junção dessas nossas células a bactérias e outros micro-organismos que nos habitam, formando essa “república” como a Olga a nomeia. Fiquei pensando como isso é um pouco como a junção de vários aspectos da nossa vida externa, feita de um coletivo multiforme, onde atuamos em diversos frontes. Onde não somos só uma coisa, um caminho, uma escolha. Onde muitas vezes somos contraditórios nas próprias falas e ações, porque na nossa multiplicidade, acabamos nos misturando entre o sim e o não.
Estava em dúvida se voltava com a newsletter antes da entrega da dissertação. Mas a vida em momento algum fica parada, rodeada só por uma área, focando só nos 43% de sua demanda originária. Nunca vai ter uma hora de completa calmaria, quando os astros se alinham perfeitamente para a gente se concentrar em só uma coisa. Ao menos, na minha vida, eu desconheço isso. Mesmo quando esses momentos aparecem, e Mercúrio não está retrógrado e o vizinho não está fazendo uma obra infernal e todas as contas foram pagas em dia e o clima está perfeito, nem frio, nem quente, incríveis 22 graus ideais com brisa leve do oceano trazendo o aroma da maresia e o sabor de água de coco na boca, ainda assim haverá louça para lavar, roupa para estender, gatos para cuidar, família para isso, trabalho para aquilo, o dente que dói, a pilha de livros que acumula e por aí vai.
Claro que a newsletter entra nesse combo, e, como tal, faz parte da dança, cada hora num ritmo, cada hora num clima. Bom, o clima por aqui tem mudado. É quase hora de ir embora, concluir um ciclo que vai ficar para sempre comigo. Nesse processo intenso dos últimos meses, demorei, mas entendi algo muito importante do meu aprendizado com o mestrado.
Só para lembrar, meu mestrado é em literatura com foco na escrita criativa. Por consequência, a minha dissertação é muito mais criativa do que acadêmica. Uma grande oportunidade de unir o útil ao agradável e começar livro novo!
Durante o percurso desse ano, eu me senti feliz em cumprir com êxito todas as etapas do curso até aqui, enquanto, paralelamente, venho trabalhando na resstruturação da Ansel e em outros projetos. Não tem sido fácil. Quem me acompanha no Insta ou até aqui pela newsletter, já me “ouviu” falando o quanto ralei com a escrita em inglês. Foi uma doce ilusão vir para cá com um inglês considerado super avançado no Brasil. Na escrita criativa, descobri que esse inglês estava milhas aquém do necessário.
Além desse desafio, eu só virei uma chave há poucas semanas, depois de praticamente um ano: lembrar de usar a tal da autenticidade a meu favor.
Em muitos trabalhos, eu escrevia adaptando para algo que achava que para eles seria mais “identificável”. Ou seja, já que estou no Reino Unido, muitas vezes usei o Reino Unido como pano de fundo para alguns textos. Digo Reino Unido, mas dizer Irlanda seria muito mais apropriado e profundo, na minha opinião. Acontece que eu acho que só vou conseguir escrever sobre a Irlanda daqui muito tempo. Com certeza, quando eu sair dela e puder absorver tudo que vivi, tudo que essa ilha entrega, as questões entre norte e sul, seu povo, sua cultura, seu encanto e seus assombros, o meu ser estrangeiro habitando essas fronteiras e convivendo, conhecendo e aprendendo com indianos, chineses, russos, árabes, estadunidenses e irlandeses. Com certeza, isso vai vir para a minha literatura. Mas, por enquanto, não. Ou melhor, por enquanto não de forma consciente, porém é claro que as influências desse ano já pairam nas minhas digitais.
Nessa tentativa de encaixar meu texto ao inglês e, também, à terra irlandesa, eu esqueci do essencial na hora da escrita: como eu realmente queria contar algumas histórias.
A gente não precisa ficar preso a nada para escrever. Dizem que só se deve escrever sobre o que se conhece. Eu acho isso muito relativo, e, dependendo de como se interpreta essa sugestão, por vezes pode tornar-se algo limitante à própria escrita. Tem uma música da Mariana Volker, chamada Cheia de dobra, que eu adoro e diz assim:
Viver assim é a coisa melhor deste mundo
Ainda que o mundo seja
Cheio de aspas, cheio de aspas, cheio de aspas
Cheio de dobra
Cheio de sonho, cheio de vida, cheio de medo
Cheio de histórias, cheio de coisa, cheio de mágoa
Cheio de dobra, cheio de medo, cheio de dúvida
Cheio de coisa, cheio de tudo, cheio de nada
Cheio de sonho, cheio de medo, cheio de farpa
Cheio de força, cheio de brilho, cheio de dobra
Há muito nas dobras da escrita criativa sobre o que desconhecemos também, mas temos vontade de ir, mergulhar, entender e inventar. Acho que, diferente disso, e algo que nos leva para um caminho mais negativo e complicado, é querer se forçar a escrever algo por motivos externos ao que nos move. No meu caso, eu me forcei a algumas escolhas no texto para encaixá-lo em algo que achei que o outro entenderia melhor, ou se identificaria mais. Isso eleva as chances de manter esse texto numa superfície. E acho que, de certa forma, isso também subestima o leitor.
“A consciência da nossa complexidade e da nossa dependência de outros seres, ou até da nossa condição biológica enquanto multiorganismos, introduz nos nossos pensamentos, de modo orgânico, os conceitos de enxame, simbiose, cooperação”
Escrever é perigoso, de Olga Tokarczuk
Uma das disciplinas que tivemos aqui foi um workshop, no estilo vamos todos aprender a criticar o texto do coleguinha e a sermos criticados também. Não é tarefa fácil, nenhuma das duas, mas são os verdadeiros momentos de crescimento.
Um dos textos que eu apresentei era de uma cena entre mãe e filha que vai entrar nesse livro novo. Curiosamente, essa cena vai estar mais para o final da história, mas, por mais que eu soubesse a história que eu queria contar, não estava conseguindo começar. Então escrevi essa cena que era (e ainda é, pois está longe de estar pronta) um dos meus grandes desafios do livro. Foi muito interessante, porque é uma cena simples, uma conversa na cozinha, um momento de desnudar, tirar aquelas máscaras que a gente carrega e às vezes só as arrancando para subir de nível e dar um passo mais profundo na relação, seja ela qual for. Era esse o momento.
Pula alguns meses, a mesma professora do workshop acabou sendo a minha supervisora da dissertação. Na nossa primeira reunião, depois de ter lido as primeiras 7mil palavras que eu escrevi para a dissertação, ela me disse: eu amei conhecer um supermercado brasileiro (a primeira cena do romance é num corredor de supermercado) e as ruas brasileiras, e o seu olhar brasileiro, e eu estou muito feliz que você vai continuar com a história daquela cena entre mãe e filha.
Ela me lembrou como nesse último semestre ela me viu escrever ficção cientifica, escrever um conto estilo thriller de vingança (btw, esse ficou MASSA!), mas que, pelo que ela percebeu, meu maior forte são os encontros, as relações. Nem preciso comentar como isso me deixou feliz, até porque depois ela concluiu a fala dizendo: Se eu pegasse esse livro e lesse essas primeiras páginas numa livraria, com certeza o compraria. Quase desfaleci por um momento, né. Depois, meu eu sabotador pensou: essa senhora está muito sem parâmetro. Sim, sim, o trabalho na terapia está em andamento, mas o caminho ainda é longo. Por fim, e mais importante, eu fiquei pensando dias sobre o principal do feedback dela.
Eu visualizei toda a jornada dos últimos anos, muito antes do mestrado. Da fantasia situada na Bahia que eu escrevi para conhecer mais sobre a escrita do gênero fantasia e ver como eu me sentia com aquilo, das minhas publicações, dos estudos de contos e microcontos e romances e, mais atualmente, dos poemas, até chegar aqui, no meu maior projeto até o momento, Porque ele é muito sincero: é uma tentativa de entender algumas questões das procuras do corpo e da mente, através da união dos meus 43% de células humanas e todos os outros 57% do que há de fora e me habita, e já faz parte de mim mesmo às vezes esse caldeirão parecendo mais alien do que humano. É uma história sobre o medo e a vergonha, as lembranças e a ficção, é sobre fotografia e inteligência artificial, e sobre às vezes ser uma estrangeira no próprio corpo, enfim, tudo o que tem me feito olhar de volta para a gente (a gente mesmo, coletivo e indivíduo) e pensar: pohhan, mas que caos, hein, pessoal! Que caos é existir e crescer e amadurecer e querer e aprender só para descobrir todo dia que ainda não entendi tanta coisa.
E que bom, porque, como amo aprender, sempre tem algo novo pela frente. Porque esses micro-organismos são essenciais à nossa saúde. Que corpo chato, estéril seria se fosse só a gente, só o nosso olhar, só a nossa opinião, só as nossas pupilas se encarando no espelho sem encontrar outros 57% de possibilidades de emoções e diferenças e construções e histórias e histórias e histórias e histórias.
Então, nas próximas newsletters, vou compartilhando um pouquinho mais do processo de escrita desse livro que começou como dissertação e tomara que acabe eventualmente na sua mão, para você curti-lo comigo e falar:
Nossa, Cleu, realmente, que caos! Mas que caos gostoso de ler!
Beijo procês,
Cleu
Sugestões maravilhosas do mundo infinito das Newsletters
Outro dia, o Julián Fuks declarou a morte da crônica em sua coluna do Uol. Pois, surpresas com isso, muitas escritoras pegaram esse tema para elaborar o quanto isso não faz muito sentido, especialmente no momento rico em que as newsletters e a escrita do cotidiano tem estado tão presente na caixa de email de tanta gente.
Alguns desses textos foram uma delícia suprema de ler. Vou deixar alguns deles para vocês também, vale super!
Eu sempre indico o
da Vanessa Guedes, que pra mim escreve de uma forma rica em inúmeros aspectos. Um tempo atrás, ela escreveu uma edição aqui falando sobre a escrita pessoal, que passa também pelas nossas crônicas. Achei que vale a leitura, especialmente nesse burburinho pós-Fuks, apesar dela não ter escrito devido a isso, foi bem antes na verdade.E a dica: Vanessa vai dar uma oficina de escrita no começo de setembro. Vale conferir aqui!
E, pra seguir no assunto escrita, a Margareth Atwood e seu senso de humor.
Se você gostou da leitura, me ajude a chegar a novas pessoas compartilhando <3
fiquei tocada com tanta coisa dita aqui!
escrever ficção em inglês, o lance de não ter um momento ideal de calmaria porque a vida tá sempre acontecendo... e Cleu, se a professora de escrita criativa disse que compraria o livro, aceita o elogio. ela é PROFESSORA DE ESCRITA, mulher! hahaha ❤️
no mais, muito agradecida aqui pelos links e carinho. ☺️