Retomar essa newsletter depois desses dois meses de pausa foi desafiador. Não pela dificuldade em escrever, mas por querer escrever tantas coisas sobre assuntos diversificados que eu congelei, sem saber por onde começar. Em janeiro, eu fiz uma das viagens mais inéditas da minha vida. Inédita pela aventura, pelo lugar inóspito, pela beleza absurda, pelo inesperado que esse tipo de viagem sempre proporciona. Mas teve uma coisa em específico que foi bem marcante, então é por ela que vou começar o ano aqui, nessa edição de número 40 de Do outro lado e aqui, falando justamente do lado de lá, o tal do Polo Norte.
Mês passado fomos a Kiruna, uma cidadezinha bem ao norte, aliás, a mais ao norte da Suécia, depois da linha do Círculo Polar Ártico. A última escala do avião foi em Paris e, de Paris, entramos em um avião menor, preparado para um clima que eu desconhecia até então. Inclusive, aprendi algo sobre aviões e o gelo: para o avião conseguir alçar voo e fazer um voo de segurança saindo de um lugar como Kiruna, com seu inverno que chega a temperaturas mais negativas do que a pessoa mais pessimista do mundo conseguiria alcançar, o avião precisa passar por um procedimento antes. O norte da Suécia pode chegar até 40 graus negativos, mas fica geralmente na faixa ali entre -15 e -25 graus, então são condições realmente extremas. Nós, por exemplo, vivenciamos temperaturas que variaram entre -18 e -05 graus num dia bom. Uma delícia...
Então para “soltar” as asas do avião, antes da decolagem é preciso mandar um jato quente de produtos químicos a fim de descongelar quaisquer partes e permitir a segurança do voo. Isso aconteceu quando estávamos indo embora, e eu fiquei dez minutos assistindo da janela do avião aquele procedimento, pensando se o rapaz do lado de fora, no topo de uma espécie de andaime elétrico, sentia frio enquanto efetuava o processo do jato igual um bombeiro com sua mangueira, mas ao invés de apagar um fogo, esse estava se esforçando para esquentar as asas. É provável que ele estivesse confortável naquela situação, porque devia ser dali e isso era só mais um dia na vida dele enquanto pra mim absolutamente tudo era novidade: do frio congelante à limpeza e aquecimento das asas do avião.
Pensei também que, se tudo desse certo, em breve eu estaria pousando em Belo Horizonte, num clima de 34 graus positivos, e que louco é esse mundo onde se vai dos 18 negativos aos 34 positivos num piscar de olhos, que intenso é nosso mundo interno, que perfeito é nosso planeta e que bizarra e incrível é a capacidade da nossa espécie. Acabei de gastar todos os adjetivos nesse texto que não gastei nos textos dos últimos anos, mas é o impacto ainda presente dessa viagem.
Kiruna é uma cidade bem pequena, de cerca de 17 mil habitantes. Talvez pelo frio, em vários momentos ela mais parece uma cidade deserta, quase fantasma quando coberta com tanta neve e a gente não sabe onde está a linha do horizonte ou se existe sol no céu. Me lembro de um dia estar tomando café da manhã no hotel e assistir pela janela rajadas de ventos que levantavam a neve do chão, fazendo redemoinhos como minitornados enquanto uma única pessoa passou ao lado do redemoinho, cabeça baixa, mochila nas costas, mãos nos bolsos. Mais ninguém passou por ali pela próxima uma hora em que eu assisti da janela, e o hotel fica no centro da cidade. Nem carro, nem gente, nem nada. Mas o ponto que me marcou foi o fato de ser uma cidade que está afundando. Não ali, exatamente ali onde estávamos. Mas a Kiruna original.
Existem duas Kiruna hoje, a “velha”e a “nova”. A velha Kiruna foi fundada em 1900. Desde os primórdios ela existiu por conta da mineração de ferro na região. A exploração começou junto da construção da linha férrea e continua até hoje, mas em 2004 a mineradora KLAB avisou que sim: a cidade ia afundar devido à mineração, mas eles iam continuar com as escavações.
Como o ditado nos ensinou, água mole em pedra dura tanto bate até que afunda uma cidade inteira. Pois assim começou a acontecer. Então a solução foi mudar Kiruna de lugar. Literalmente transportar casas, reconstruir prédios e deslocar imóveis inteiros para um local há quatro quilômetros de distância da Kiruna original. Assim, com o passar dos anos, o plano começou a ser desenvolvido e, aos poucos, tem sido colocado em prática. A igreja será a próxima a ser levada, inteira, mesmo que meus olhos e minha falta de conhecimento sobre engenharia tenham duvidado, já que não é uma construção pequena.


A gente passeou um pouco pela cidade velha. O visual é um pouco mais bucólico, vimos mais casas e mais árvores, pequenos bosques para todo lado, porém ficamos hospedados no centro da nova Kiruna, visivelmente mais moderno e planejado, com ruas idênticas, tudo muito bem calculado.
Eu fiquei imaginando a sensação de receber essa notícia: sua cidade está afundando. Como ficarão suas memórias no futuro? O parquinho onde brincou, os caminhos que percorreu. Toda cidade está em constante mutação, afinal nossa espécie está em constante desenvolvimento, ampliação, multiplicação. Mas uma cidade que afunda, lentamente, com pequenos picos de sustos mais fortes, como um terremoto aqui outro ali, como aconteceu lá em Kiruna, em 2020, para lembrá-los de que sim, atenção, ela continua afundando! Deve ser uma sensação tão complexa! E Kiruna está longe de ser a única. Passeando pela cidade velha, me lembrei de Maceió e seus bairros interditados, milhares de pessoas retiradas de suas casas porque parte da cidade está afundando devido à extração de sal-gema, um minério utilizado na produção de soda cáustica e PVC. Situação causada pela empresa Braskem. Essas são apenas duas de inúmeras cidades pelo mundo vivendo atualmente algo do tipo.
Aline Valek, autora de livros e de uma newsletter maravilhosa aqui no Substack, chamada Uma palavra, escreveu um livro cujo título é Cidades afundam em dias normais. Em algum texto dela que eu li, ela comenta que “cidades afundam com uma frequência desconcertante”, por isso ela quis escrever um livro sobre o tema, se aproximar dessas pessoas que vivem em meio à seu pequeno apocalipse cotidiano, assistindo-o acontecer lentamente, sem qualquer controle possível sobre um grande pedaço da nossa vida: o lugar onde a gente mora, o lugar de onde a gente veio.
No voo de volta ao Brasil, felizmente o jato quente e químico fez o que deveria fazer, e chegamos bem à nossa primeira escala, primeira de algumas. Na penúltima parte do trajeto, a “perna” mais longa da viagem com suas 11, 12 horas de duração para cruzar o Oceano Atlântico, a cada sacudida de turbulência, vinha o lembrete, como um risinho da natureza, falando “eu estou aqui, eu não afundo, quem afundam são vocês”. Aproveitei o tempo de voo para ouvir um podcast novo do Gustavo Ziller, chamado Bucket list. Era o episódio de entrevista com o Lenine. Em meados da conversa, Lenine recebe uma pergunta da autora Ana Quintana:
por que o mundo não acaba?
No que Lenine responde: é porque quem acaba é a gente. O mundo não acaba, o mundo permanece como um ser inteiro. O planeta é uma entidade. O somatório de todas essas vidas, de todas essas consciências. Está tudo dentro de um útero e a atmosfera é o útero e o planeta é a entidade.
O mundo não se acaba.
E a vida sempre permanece no mundo.
Como é possível haver tamanha beleza, tamanha intensidade entre esses polos opostos, calor e frio extremos, sempre com tanta vida, sempre com tanto caos?! E graças ao ferro dessa mina, aos químicos quentes da mangueira e do rapaz lá fora em seu pequeno andaime, talvez sentindo frio, talvez não, que eu pude ir lá e voltar pra casa, conhecer um dos lugares mais diferentes e impactantes que já vi, imaginar se um alce sente a terra afundando sob suas patas enormes de casco de duas pontas, e eu sei que sua pegada é assim porque as vi num monte de neve que batia no meu joelho. Vi tudo isso graças ao jato de químicos e à cidade que afunda, coisas que me marcaram tanto quanto ver a famosa aurora boreal.
Aí me lembrei de uma das músicas mais icônicas do próprio Lenine, talvez ali esteja um pedacinho da resposta para essa minha dúvida:
“E a loucura finge que isso tudo é normal
A gente espera do mundo, o mundo espera de nós
...
E quem quer saber
A vida é tão rara,
tão rara”
Falando em espaços geográficos, queria deixar um convite para as pessoas que moram perto de/ou em Beagá:
Dia 15 de março, sábado, começa a nova turma de escrita criativa do meu curso Entrelaços: a escrita criativa inspirada pela fotografia.
Um curso presencial na capital mineira que une escrita e fotografia para despertar a sua criatividade e aprimorar sua narrativa. Com aulas dinâmicas, análises literárias e uma saída fotográfica-literária exclusiva que vai acontecer na Praça da Liberdade, o curso propõe novas formas de expressão para cada aluno ganhar mais confiança na própria escrita, se reconectar à imaginação e deixar fluir tudo que está querendo ser escrito dentro de você.
É um convite afetuoso, onde a gente vai tomar café, contar histórias, aprender e dialogar sobre a vida, porque escrever é sobre viver.
E, para muitos de nós, é também uma forma de sobreviver <3
Serão 06 encontros presenciais e quinzenais, todos entrelaçando a construção narrativa à fotografia para despertar sua imaginação e aflorar seus sentidos. Durante três meses, vou ensinar técnicas fundamentais da escrita e sugerir experiências práticas em encontros de muita troca e muitas histórias.
Essa newsletter é 100% gratuita. Mas se você quiser contribuir para ela e para mim, conheça meus livros, compartilhe a newsletter e/ou indique esse curso para alguém que possa querer.
Eu agradeço de coração!
Que delícia voltar a escrever aqui!
Me contem como essa vida tem estado por aí também :)
Beijos congelados e até a próxima,
Cleu
Incrível como sempre. Minha leitura fundamental
Muito interessante a newsletter de hj! Fiquei pensando na ilhazinha a quatro horas de distância da minha casa (Manhattan que chama?) que tbm está afundando por causa do peso dos edifícios. O ser humano se supera em destruir-se a si próprio como nenhuma outra espécie no mundo! E falo isso num inverno em que do lado de fora da minha casa tem 2 metros de neve acumulada e hoje amanheceu -16 graus. Eh isso, o mundo vai continuar aqui! Mas a gente…